terça-feira, 16 de dezembro de 2008

O que nunca chega aos jornais

Fonte: http://abrupto.blogspot.com/2008/12/o-que-nunca-chega-aos-jornais-no-incio.html
José Pacheco Pereira

No início desta semana João César das Neves publicou no Diário de Notícias um artigo muito crítico do jornalismo português. (...) Nele se escreviam estas verdades como punhos:
"(...) relatar o sucedido é o que menos interessa. O jornalista vai ao evento para impor a agenda mediática que levou da sede. (...) O público não é informado da orientação do meio que escolheu, porque todos dizem apenas a verdade. Todos os repórteres têm opinião, mas todos são isentos de orientações e partidarismos."
(...)

Esta semana tive ocasião de assistir em directo e, de algum modo, participar num evento que ilustra de forma exemplar como se faz informação em Portugal. Convidado a participar no 2.º Encontro Nacional de Centros Novas Oportunidades, pude assistir ao modo como as coisas funcionam e como chegam (ou não chegam) ao conhecimento público.(...)

Eu conhecia o programa oficial do encontro, onde participava num dos debates, só que, na verdade, o que aconteceu foi mais uma sessão preparada para que o primeiro-ministro tivesse a sua dose diária de televisão, num evento "positivo", com a vantagem de poder fazer um comício para 1500 pessoas, professores na sua esmagadora maioria, que tinham que lá estar por obrigação profissional.

No programa oficial não há qualquer menção à presença do primeiro-ministro, devendo o encontro ser aberto pela ministra da Educação e pelo ministro do Trabalho. Só que se percebia de imediato, pelo aparato na rua, que ia haver um participante não anunciado, José Sócrates.

Aliás, a comunicação social também fora prevenida, porque estava lá um batalhão de jornalistas, câmaras, carros de reportagem, etc. Este chegou com quase uma hora de atraso, sem qualquer pedido de desculpas, e tudo esperou por ele.

Eu, que não gosto de ser "levado", ainda hesitei se continuaria ou não na sala, mas decidi continuar, caminhando para a última fila. As intervenções dos ministros da Educação e do Trabalho foram sóbrias e correspondentes ao espírito de um encontro de trabalho, como era suposto este ser.

Só que depois veio o primeiro-ministro e, no meio da agitação dos jornalistas, fez o seu comício diário para a televisão, cheio de "paixões" e "desejos" e "intenções" e sentimentos vários a que, obviamente, só o seu Governo respondeu na história da nação. As Novas Oportunidades somaram-se a muitas outras "mais importantes" iniciativas do Governo. Em cada uma ele diz que é "a mais importante", mas ninguém dá pelo contra-senso.(...)

Os nossos jornalistas não se apercebem, ou apercebem-se bem de mais, do seu papel de instrumentos de propaganda, sem qualquer conteúdo informativo, e acham natural o que se passa. Terminado o comício, Sócrates saiu e com ele os jornalistas todos (se algum ficou não dei por ela).

Quando resolvi ficar, decidi também que iria acrescentar à minha comunicação sobre as Novas Oportunidades, algo mais: uma referência à politização e governamentalização daquela iniciativa, e aos seus efeitos perversos bem visíveis, ouvindo-se o primeiro-ministro.

Foi o que fiz, referindo como sinais dessa politização, que pode pôr em causa os objectivos das Novas Oportunidades, a obsessão pelas estatísticas e os números redondos (por muitos números redondos que se atirem, o objectivo apontado para 2010 de um milhão de participantes está muito longe de ser alcançado), a condição básica de exigência na certificação, e, por fim, a necessidade de medir os resultados do programa por uma avaliação externa e pelo seu impacto na empregabilidade e no aumento da produtividade nacional.

Parece que referir esta necessidade de resultados mensuráveis, a prazo sem dúvida mais dilatado, incomoda muita gente, mas é inteiramente coerente com os objectivos da iniciativa, porque não se pode considerar que a "batalha da qualificação" se fica só pelos "saberes" mais ou menos intangíveis dos participantes ou por um diploma que não serve para nada.

Que estas preocupações são partilhadas pelos formadores presentes na sala, que também não devem ter gostado muito do comício a que foram obrigados a assistir, está o facto de eu ter sido o único participante a receber palmas em plena intervenção e exactamente nas partes mais críticas para a governamentalização da iniciativa.
Mas o que aconteceu foi mais um não-evento, como muitos outros que devem ocorrer pelo país fora, e que não encaixam no padrão comunicacional da subserviência ao poder.

Eu sei que este meu artigo traduzido em "jornalistês" dá qualquer coisa como isto: ele quer comparar-se ao primeiro-ministro de Portugal no "critério jornalístico", e está danado por ter ido lá dizer coisas a despropósito, ninguém lhe ter ligado e não vir nos telejornais. Nem sequer precisam de se esforçar, porque eu sei o que as casas gastam. Se isto não vier nos jornais, vem nos blogues dos jornalistas.

Mas, voltando ao sério, continuam para mim de pé as afirmações mais duras de César das Neves:
"O actual Governo goza de clara benevolência jornalística. Apesar da contestação e inevitáveis 'gaffes', o tratamento não se compara com o dos antecessores. (...) Muitos dos que relatam o jogo participam nas equipas. Quando o jogo se suja, avolumam-se as suspeitas. Isto ainda não afecta o poder da imprensa, mas já degrada a classe."
Os jornalistas sérios sabem que é assim, mas mesmo esses deviam fazer mais do que o que fazem para não pecarem por omissão. Também se vai para o Inferno por isso.

(Versão do Público de 6 de Dezembro de 2008.)

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